segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A adaptação fragmentada



Fernando Campos

O escritor Rubem Braga classificou Vidas Secas, como um “romance desmontável”, uma definição acertada, que deve ter sido elaborada após seguidas leituras do texto.Essa idéia de que o texto de Graciliano Ramos foi “montado é pertinente, e se deve ao fato de como os textos foram publicados. Como contos independentes separados. Porém, interligados, possibilitando duas formas de leitura: A perspectiva do conto isolado e como um capitulo, a parte de um todo.

É preciso lembrar para registro que quando Graciliano Ramos deu início a publicação dos primeiros capítulos, eram apenas contos, e o primeiro foi: ”Baleia”,que sempre foi o núcleo gerador da obra.

Essa experiência de composição e publicação literária fragmentada pode ter contribuído para que a adaptação para o cinema fosse bem sucedida. A roteirizarão de grandes romances para o cinema é bem comum.Mas roteirizar-adaptar implica num processo de síntese-fragmento.Isolar partes da composição narrativa literária e converter isso para uma narrativa cinematográfica,numa transfiguração de linguagens diferentes,porém,equivalentes em objetivo em se tratando ,ambas,de narrativas,ainda que veiculadas por códigos de expressão distintos:Cinema (filme) Literatura (texto/livro).

Para verter o conteúdo literário para o cinema através da roteirização é preciso reduzir o volume do conteúdo sem comprometer a dimensão dramática do texto.

O filme Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, narra a história da família de retirantes que migra de um lado para outro do sertão em busca de uma vida (seca)melhor.A história é contada-narrada-fragmentada de forma muito competente.

A atmosfera do filme é densa, pesada e morbidamente ensolarada. A narrativa é linear e lenta.Essa percepção é apenas perturbada pela insistente dissonância embutida ao som experimental do filme,que sem dúvida contribui para que haja um certo desconforto auditivo nas audiências que assistem a Vidas Secas

As personagens surgem como fantasmas. Figuras quase etéreas.Semelhantes a folhas secas ou asas de inseto. Quase transparentes. Lembram as figuras da imagem retratadas por Portinari no seu quadro “Os retirantes”.

Ainda que o filme fosse colorido, a paisagem do sertão nordestino neutralizaria a cor. O romance é preto e branco. E o filme é mais preto e branco ainda. O resultado é uma superdimensionada transfiguração neo-realista do agreste cenário do nordeste brasileiro. Uma expressão de BELEZA singular,repleta de um amargo lirismo.O filme consegue explicitar as imagens do romance sem parecer uma mera reprodução ou mimetismo. Contribui para ampliar a carga dramática do conteúdo. O conjunto do filme, personagens,fotografia,ambientação e narrativa se traduzem numa profunda elegia que culmina quase em pranto,principalmente na figura da personagem Baleia e o seu destino final. Ela sensibiliza. Muda humores. Atinge o coração e se perpetua na mente. Tanto o filme quanto o romance gera questionamentos. A relação de poder das instituições seculares da qual a sociedade se utiliza para vitimar a todos,tanto quem concorda quanto quem resiste.

No fim do filme a família de Fabiano aparece quase flutuando no horizonte como uma tremula e frágil miragem. Se afastando lentamente. Distante. Perdendo os contornos numa imagem ilusória em meio ao efeito de ondas de calor que emergem do solo. As figuras mudas, absorvidas por seus devaneios, sendo engolidos por suas quimeras, dissolvendo-se e sendo devolvidos a Arida paisagem (do pó ao pó), a terra e a anulação de suas identidades (personagens) como na sua vida e até o fim... SECO.


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