UMA FLOR NEGRA NO JARDIM FLOWER POWER HIPPIE
Fernando Campos
Um pesadelo amargo e descolorido. Deformado por intensas circunstâncias como a morte inexplicável de J. F. Kennedy, a Guerra do Vietnã e a especulação de conflitos nucleares entre E. U. A e U. R. S. S. Os Doors – o nome foi retirado, ou percebido, de um poema de William Blake: “Se as portas da percepção fossem abertas tudo apareceria como realmente é: INFINITO” – Um corpo estranho no American Way of Life. Estranhos até mesmo para aquele tempo. Uma banda de Hard Rock com matizes de psicodelia e Blues amparados por uma pulsação lisérgica. Um som vigoroso e bruto. Mas as vezes, delicado como o som do grito das borboletas. Uma perfeita fusão de imagem, música e verso.
Uma verve poética que traduzia visões do Céu e do Inferno (como em William Blake). Abismos e buracos negros. Tangenciando a ESSÊNCIA – ou o SER – através do uso excessivo dos ácidos e psicotrópicos (como em Blake, novamente: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.”) chocando-se contra a dolorosa EXISTÊNCIA. As vezes como uma tentativa de iniciar um diálogo. Outras vezes parecendo somente estabelecer uma idéia de ruptura definitiva e necessária. Desespero e abandono. Uma reivindicação do direito de não concordar com o absurdo que o mundo representava. Reagir contra tudo. Expor a fraqueza e a fragilidade do ser humano diante do vazio da insignificância e absoluta nulidade.
O primeiro álbum dos Doors, de 1967, é homônimo. A música é estranha para os padrões de Rock’N’Roll sessentista. O conteúdo das letras, bem como os temas abordados eram considerados inusuais e as vezes mesmo bizarros: o vulto recorrente da Morte, Liberdade, Sexo, Viagens Lisérgicas. Numa mesma letra é possível vislumbrar os povos indígenas da América Selvagem e a cultura grega. Édipo Rei revisitado na figura de psicopata da cultura americana de Serial Killer. The End é um pesadelo em Branco e Preto,Bem cinematográfico, pois Jim Morrison nutria um forte vinculo com o cinema, tendo mesmo realizado, participado e idealizado alguns projeto nesse código de expressão, que muito influenciou a maneira como praticava a poesia. Em suas letras e poemas sempre surgiam garotas lindas (quase sempre uma: Pamela Courson, sua “parceira cósmica”, como costumava dizer), amores selvagens, répteis, longas e sinuosas HIGHWAYS. O Leste e Oeste. Imagens de nascimento e morte. O nascer do dia e o pôr-do-sol. Gêneses e Apocalipse, tudo canalizado pela visão alterada dos sentidos submetidos a experiência com drogas lisérgicas, sintéticas como L. S. D. e naturais como Cactus Peyote cultuado pelos índios que viviam no deserto selvagem e mágico.
É meio lugar comum afirmar que os Doors inauguraram um tipo de rock com amplas possibilidades expressivas. As referencias de Jim Morrison eram vastas e incomuns para bandas de rock. Essa leitura dele é perfeitamente aceitável e é peculiar a sua personalidade. Desde garoto, Jim manifestava interesse agudo por coisas obscuras e inexplicáveis, tais como Xamanismo, Cultura Primitiva e Demonologia. A sua mente criativa aliava imaginação, razão e delírio. Isso influenciava todo resultado daquilo que iria preencher os espaços vazios dos seus inúmeros cadernos de notas, onde escrevia indiscriminadamente trechos do que viria a se tornar ensaios filosóficos, peças de teatro, poemas e letras de música. Além de críticas, argumentos e até auto-entrevistas, que contemplavam diversas áreas do conhecimento, indo da arte e cultura grega, a ancestralidade histórica dos povos primitivos, filosofia clássica e o Tao da Física de Fritjof Capra. Tudo o interessava. Aos 17 anos, Jim Morrison, já lia e compreendia textos da complexidade de autores como Franz Kafka, Aldous Huxley, Nietzsche, a poesia de Rimbaud e Baudelaire, Maldoror, Nerval e Willian Blake, e os lia com uma freqüência e intensidade nervosa. Com eles aprendeu a observar e parece ter concluído que a existência é uma fachada. Ou apenas uma fração do todo: o infinito. Compreendeu que estar vivo era como estar submetido a pressão de um oceano de dor e que a morte representava a suave liberdade.
Todo esse volume de leituras e estudos dedicados vieram a transformar Jim Morrison num tipo de intelectual-letrado multifacetado, num nível diferenciado de erudição (como um beatnik desbundado e kamikaze), numa esfera de manifestação constante que a figura pública de ídolo do rock proporcionava, ou seja, uma resposta rápida e imediata. Mais próxima da realidade e consciência do seu tempo. Ele mesmo classificava os membros da banda como agentes “políticos eróticos”. Nada comparado as mentes exíguas e congeladas pelo ar-condicionado das salas das universidades. Era um homem de atividade freqüente. De ações diárias. Das batalhas de rua, bem como A HISTÓRIA EXIGIA NAQUELA DÉCADA de convulsão social. De grandes eventos sócio-políticos e culturais que explodiam como Napalm se espalhando pelas cidades da Europa e causando uma onda de influência que atingiu o mundo todo.
Não se pode deixar de mencionar a espinha dorsal dos Doors, responsável pela moldura sonora que os destacavam das inumeráveis bandas da cena de rock dos anos 1960. Os Doors realmente soavam – e SOAM – mágicos. Fora do tempo. É uma pulsação que não se reproduz. É única. Eles funcionavam juntos. Ray Manzarek, formado em piano clássico. Robbie Krieger, que mesclava influências clássicas e populares num estilo flamenco, sui generis (não usava palheta) além de flertar com a música indiana (vide “The End” e “Light My Fire”) e finalmente, o terceiro elemento, John Densmore, baterista de influência jazzista que tocava no estilo do genial Elvin Jones, o baterista de John Coltrane. Todos detinham conhecimentos que iam da música folclórica americana, passando pelas raízes Folk, música brasileira como a Bossa Nova, que influenciou diretamente a batida da música “Break on Through”, indo até a música oriental, como a indiana, tendo mesmo, os três músicos freqüentado aulas com Ravi Shankar, um importrante músico da Índia muito conhecido no ocidente. Contudo, todos eles, incluindo Jim Morrison, que não sabia tocar instrumento algum, tinham uma paixão musical permanente em comum: o Blues.
No palco os integrantes da banda se transformavam num mecanismo simbiótico perfeito. Alcançavam níveis criativos impressionantes. Nada era igual. Nunca uma apresentação era igual a outra. Esmeravam-se em improvisos, numa espécie de “FREE-ROCK” que sempre pareciam naturais sem interferir no resultado final das músicas. Todos se encontravam num transe coletivo que invadia a atmosfera das salas de audiências atingindo o público e levando o concerto quase ao patamar simbólico de um evento religioso. Jim Morrison cantava. Sussurrava. Gritava como uma fêmea com extrema lascívia. Vociferava violentamente. Caia. Debatia-se. Declamava poemas longos e intercalava-os a discursos políticos e os unia a Blues tradicionais da cultura negra americana. Logo depois incendiava tudo incitando a platéia a reagir. Denunciando a sua inércia, neutralidade e alienação. Provocava, dizendo que eles deveriam decidir-se. Tomar uma atitude. A partir desse momento, geralmente, havia um rompante de reação e como num imenso teatro grego, assumia o papel de Dionísio. Transfiguração do teatro clássico. Convertido violentamente em teatro da crueldade de Artaud. Esse seu comportamento gerava um frenesi gigante que levava tudo a sucumbir num único movimento de destruição para garantir o real objetivo, através de sua ação expressiva, o efeito de uma BELA CATARSE. Como deveria ser... como tem de ser SEMPRE toda EXPRESSÃO DE ARTE e a EXISTÊNCIA e a VERDADE. Esta é a função básica da arte ou pelo menos deveria ser assim, ou seja, haver um propósito político para a arte. O tempo de fruição estética típico da aristocracia burguesa já acabou. Questionar. Argumentar e se isso falhar, então, é necessário DESTRUIR TUDO e começar de novo.
Uma bailarina russa do balé Bolshói, que esteve no Brasil no mês de agosto, disse em uma entrevista, uma coisa que me marcou muito, que me fez pensar durante a semana toda e que acabou influenciando a escrita deste texto: “Dançar se traduz num exercício de dor causada pelos exaustivos movimentos de repetição executados durante os ensaios. Dança é DOR. Entretanto, PREFIRO A DOR, pois essa me faz sentir que estou VIVA!” Ela disse tudo.
Sobre o filme de Oliver Stone podemos dizer que é uma evocação mítica e ficcional daquilo que a música, os Doors, Jim Morrison sua poesia e postura existencial e o contexto histórico dos anos de 1960 representavam para ele e como isso se manifestou como uma influencia capital na sua personalidade e em seu trabalho com o cinema. Oliver Stone recriou ou criou, ou até mesmo inventou toda uma atmosfera, ambiente e situações com a intenção não de descrever detalhadamente os passos de Jim Morrison ou o processo criativo da banda, mas concedeu contornos místicos e míticos àquilo que houve de factual. O ideal pelo real. Ele usou a figura de Jim para reargumentar sobre feridas e pesadelos, de ontem e de hoje que se confundem no tempo. E ele consegue atualizar, é obvio, não foi muito difícil, Jim Morrison estava a frente daquele tempo e deste também.
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