sábado, 23 de julho de 2011

A escritura do desejo
O livro de Cabeceira – Um olhar
André Leite Ferreira

Tudo é efêmero e sutil, uma sombra distante na memória e um pequeno gesto de gentileza e carinho, porém, tudo acaba sem exceção. A beleza do gesto acaba, a beleza do homem também, a vida acaba, a palavra.
Vejo de longe o jardim florido e coberto de tédio. Estranhamente insólito é o amor, obscuro, taciturno como só ele pode ser. Visceral e agudo, cheio de desejos e de rancor, uma contradição que se perde no limite do sem fim.
Incendiar o medo não elimina o medo, mas traz mudanças, por vezes esperanças e novos medos. Desejo e loucura sempre se confundem. A realidade se fragmenta. Tempo de estranheza e gozos incomuns, a palavra lavra a terra e a carne.
Entre o corpo e o papel, imagens e sonhos, fuga de si, imagem imaculada do desprezo, guerra dentro da gente, quando nos perdemos nos achamos, para tornarmos a nos perder de novo, buscamos no outro aquilo que somos, então nos perdemos no outro, o desejo, um segredo que mata.
A carne, a pele, o papel ferido pela pena, pelo falo, inútil desejo de anjo, o céu desaba a todo instante, literatura do silêncio. O primeiro modelo de barro, Deus, o teu nome inscrito na pele, o som da palavra carrega o fogo, a chuva lava a rua, as fotografias não fazem sentido, as palavras gritam.
Antes era o verbo, agora, além, a carne e o tédio. A vida muda o tempo todo, eu sei o mundo é estranho, a luz pode cegar, árvores crescem indiferentes, o frio toma conta do meu corpo e já não posso mais pensar em fazer sentido se a essência é absurda, a palavra corta a carne e recria o destino, o abandono.
A rua consome a noite, os vícios, o vazio e o tédio, além da carne a vida corre sempre ilícita, cansaço e caos, o livro não fala de tudo, mesmo quando carrega a vida, mesmo quando carrega a morte, a palavra também morre, a língua está morta, a música calou.
Apenas fragmentos apreendidos no olhar, pois a palavra também vinga, uma vingança poética, mas vingança, a navalha corta a carne, o sangue lava o corpo e acrescenta ao céu uma mancha vermelha. O fogo queima o sonho e o medo toma conta do desejo que louco grita palavras sem sentidos para a multidão, deixando escapar o gozo da escritura que toma conta das ações e do caos.
A palavra cresce, a palavra lavra a terra, a carne e o caos, no meio do jardim cresce incandescente a árvore incendiária do desejo, repetição do sonho. O livro, o corpo, a luz, o sopro, o barro modelado, a escritura de Deus, a tirania do homem, a palavra corta a carne, lava o tédio, recria a VIDA.


Um comentário:

  1. André, tocante essa prosa poética inspirada no filme. Coisa assim pra ler em voz alta! Parabéns!

    Abç!
    Tchello d'Barros

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